Confuso, consfuso, confuso! Quem no queria uma moeda pra cada vez que ouve essa pergunta? Pois bem, essa a minha explicao preferida. Pra entender esse rol melhor (e uma srie de outros que derivam dele), fundamental que a gente entenda a construo histrica desses termos. Bora?
Eu acho muito mais divertido contar essa histria da forma que eu vou contar porque explicita o absurdo da forma como a sociedade nos trata, ento com a desculpa antecipada dos termos, vale avisar que contm deboche.
No incio, era a viadagem (me oua com voz de Cid Moreira). Era s viado e sapato. A, desses viado, tinha os viado que era s viado, os viado que se montava pra fazer show e os viado que se montava 24 horas (majoritariamente na prostituio), que botava peito (silicone industrial), mudava o corpo e tals. Esses ltimos frequentemente tambm se tratavam no feminino e usavam nomes sociais femininos. Esses ltimos eram as travesti, que eram viado, mas que eram travesti antes. E a era s isso: os viado, as sapato e as travesti.
A l atrs, conforme comea a nascer uma militncia ?de homossexuais? e o movimento ?gay?, os viados que eram s viado sentiram a necessidade de brigar pra se diferenciar das travesti, pra que no fossem mais confundidos com aquele bando de puta, de vagabunda, de gente suja que manchava a imagem dos viado e impedia que a sociedade visse os viado como iguais (na cabea deles, pelo menos). Essa briga de fato existiu e se intensificou tanto durante a ditadura quanto conforme o movimento foi ganhando fora, de forma que a ciso entre os viado que s viado e as travesti, que ?no eram viado porque viado limpinho?, foi tomando fora e levando pro discurso e pras prticas de luta algo que j era verdade objetivamente h muito tempo (porque assim mesmo que a histria acontece): a travestilidade como um gnero [feminino] em si.
E a o primeiro ponto isso: travestis, ainda que estejamos no campo da feminilidade e que nossas relaes de trabalho e de gnero se dem pautadas nos elementos mais violentos do ?ser mulher?, somos um gnero especfico. Olha s: temos lugar especfico na organizao do trabalho, conjunto especfico de signos e estticas distintivos e mesmo um referencial corpreo especfico (a ?mulher de peito e pau?). O prprio senso comum, ainda que nos trate no masculino e ainda nos chame de frango, entende isso: se nos olham na rua, no apontam um homem ou uma mulher, mas ?o traveco?; se querem nos ofender, ao contrrio dos xingamentos no feminino direcionados aos gays, nos chamam de viado, de traveco, no masculino. Ou faz algum sentido a imagem de uma cara passando no carro e chamando a travesti de ?mulherzinha?? Porque compreendem, ainda que no racionalizem, que ns somos ?outra coisa? ? uma coisa que pra ele no humana, que no cabe na alteridade, mas ainda assim outra coisa, e uma ?outra coisa? feminina.
Primeiro ponto t a, ento: travestilidade um gnero. Um gnero feminino, ?do campo? do ?ser mulher?, mas um gnero especfico.
A, em determinado ponto dessa histria, as cincias psi resolvem perscrutar o mundo dessa gente muito loca e descobrem que uma parte das travesti ?achava que era mulher?, e que essa galera tinha uma relao muito violenta de negao do prprio corpo dito masculino. Tinha umas que tava de boa, mas tinha essas que tavam na bad monstra com o prprio corpo. Descobriram que entre as sapato isso tambm rolava, alis: que tinha as sapa que tava de boas, mas que tinha as sapa que achava TANTO que era ome que viviam o mesmo sofrimento violento de negao do prprio corpo, que assumiam nomes masculinos e tudo o mais. A partir dessa ?descoberta?, a cincia comea a estudar mais essa galera da bad monstra, que vai acabar sendo batizada de transexuais por entender que o distintivo dessa gente a negao do genital e a vontade de ter outro para ser ?do outro sexo?. As outras continuamos sendo as travesti. No contente a cincia burguesa, sempre genial, resolve separar tambm as travesti entre as que se vestem s pra gozar e as que so to loca do cu que botam peito e vivem como travesti 24h: as primeiras viram portadoras de ?travestismo fetichista? e as segundas, de ?travestismo bivalente?. Parece bizarro (e ), mas vale dizer que essa a catalogao atual e vigente do nosso CID (Cdigo Internacional de Doenas). Eu tenho CID10 F-64.1: Travestismo Bivalente. Loco, n?
Bom, o ponto : enquanto as travesti continuaram sendo s as travesti mesmo, as travesti que viraram transexuais pra cincia deixaram de ser substantivo pra virar adjetivo: so mulheres transexuais. Na real, oficialmente eram chamadas de transexuais masculinos (nasceu com pipi), em oposio aos transexuais femininos (nasceu com ppk) ? mas o reconhecimento do trnsito ?de um sexo para o outro? contido nesse termo legitimou que essas mulheres transexuais passassem a se reconhecer, declarar e reivindicar mulheres. Esse um primeiro elemento distintivo importante: mulheres transexuais se reconhecem mulheres e os esforos de luta so tambm no sentido de se legitimarem mulheres, tanto atravs das alteraes que julgam necessrias em seus corpos quanto atravs do reconhecimento da sociedade e do Estado. As travestis continuam as travestis.
E a importante no deixar de colocar que enquanto a transexualidade, como categoria de anlise, parte da auto-percepo da pessoa e trata da materializao dessa auto-percepo, a travestilidade o oposto: o nome dado no a uma auto-percepo, mas a uma existncia especfica de gnero, um lugar especfico das relaes de gnero e da organizao social de forma mais ampla. A consequncia disso que enquanto h alguma homogeneidade entre as mulheres transexuais, no sentido de que todas se reconhecem mulheres, entre as travestis as ?auto-identificaes? so MUITO variadas: h travestis que se reconhecem travestis e se compreendem mulheres, h travestis que se compreendem homens gays (ainda que usem nome feminino e muitas vezes pronome feminino tambm), h travestis que se compreendem ?nem homem nem mulher?, ou os dois ao mesmo tempo, etc ? o que h de comum entre ns, no entanto, que independente de como rola a auto-compreenso no detalhe, todas nos compreendemos travestis em primeiro lugar. Antes de qualquer outra coisa, nos entendemos travestis. E a, considerando que o ponto de partida das duas categorias so distintos, tambm h mulheres transexuais que tambm se compreendem travestis, muitas at por perceber que assim que a sociedade enxerga e trata todas ns.
E pra arrematar: pra efeito de militncia e luta por polticas pblicas, o Estado ainda considera como distino que mulheres transexuais desejam a transgenitalizao (?mudar de sexo?)e que travestis no. uma distino limitada, mas historicamente importante e que no devia ser desconsiderada (inclusive porque encontra algum acordo na histria dessas categorias). Mas na prtica, a coisa t long de ser bem assim.
Simples assim? No, tem mais. Muito mais. Mas pra comear t de bom tamanho.