A partir disso, os tais romances voltados s demografias de shounen e shoujo (leia-se: livros com narrativas e temas semelhantes aos que so encontrados em mangs shounen e shoujo) foram ganhando cada vez mais destaque graas s aes transmdia, isto , adaptao para anims, mangs e jogos; at ter a sua exploso definitiva no comeo dos anos 2000.
Foi tambm nessa poca que os otakus japoneses ? fs to somente de anims e mangs ? passaram a consumir aquele tipo especfico de livro em prosa, dando incio ao processo de incorporao da light novel como algo da cultura otaku.
III. Definio
Muito bem, ento, j temos a primeira definio:
- Livros em prosa (romances) cujo pblico-alvo a exata mesma demografia shounen e/ou shoujo dos mangs.
Contudo, antes de continuarmos, devo fazer uma ressalva: assim como no Brasil e no resto do mundo, nem no Japo existe uma definio clara do que light novel. A diferena, para os japoneses, que h consensos, como vou discorrer a seguir, e passado, como foi supracitado (afinal, o bagulho nasceu l).
OK. Voltando s definies, vamos pelo mais fcil, tcnico e talvez o nico que seja objetivo:
- Livros que so publicados por selos de light novel.
Sei que voc quer dizer ?durr?, mas calma. fato que no existiam ?selos de light novel? antigamente, eles foram sendo criados pelas editoras depois que esse tipo de leitura j estava relativamente difundido. Isso significa que, no fim das contas, tem algum ali dentro de cada editora que fala ?ei, isso daqui tem cara de light novel, vamos lanar pelo nosso selo de light novel?, e ponto. (Claro, o responsvel e sua equipe com certeza possui convices prprias para julgar se uma obra ou no dessa categoria.)Apesar disso, o fato da editora ter um selo dedicado muito conveniente, porque uma confirmao oficial por parte de quem a publica. Em outras palavras, voc nunca vai errar em dizer que uma light novel o livro que sai pelo selo de light novels de uma editora.
Alguns exemplos:
- Dengeki Bunko, da ASCII Media Works (Sword Art Online)
- Kadokawa Sneaker Bunko, da KADOKAWA (Konosuba!)
- JUMP j-BOOKS, da Shueisha (All You Need is Kill)
- Gagaga Bunko, da Shogakukan (Oregairu)
- GA Bunko, da Softbank Creative (Danmachi)
- KA Esuma Bunko, da Kyoto Animation (Chuunibyou demo Koi ga Shitai!)
A propsito, isso vale para os dois lados: se uma editora que possui um selo dedicado a light novels lana um livro pelo seu selo ?tradicional?, por mais que a obra seja infanto-juvenil de fantasia, ela no light novel. Um exemplo o your name. (que vai ser publicado no Brasil pela Editora Verus), sendo publicado no Japo pela Kadokawa Bunko, e no a Sneaker Bunko.
Em suma, no stricto sensu, somente os livros que a prpria editora disser que so ?light novels? podem ser categorizados assim.
?Mas e se eu quiser escrever uma light novel, como eu sei que estou fazendo certo? S vou saber depois de levar a uma editora??
Bem, no sentido estrito, sim.Mas como comentei antes, existem alguns consensos para o sentido amplo, sendo a origem um deles. Outro consenso, apresentado pelo editor e crtico Eiji Otsuka, o seguinte:
- Light novels so romances cuja temtica recai majoritariamente nos personagens, e no na trama.
S isso ainda fica meio vago, n?Por isso, trago citaes do escritor de fico cientfica Kazuma Shinjo que explicam um pouco melhor sobre esse conceito.
?Na produo de uma light novel, no o enredo que define um personagem, e sim, a natureza dos personagens que tem prioridade, onde o enredo deve se adequar a eles.?
Ou seja, o autor primeiro pensa em que tipo de personagem quer criar, seja ele um ?colegial normal?, uma herona de cabelos loiros e tsundere, mascote fofinho e falante ou tantos outros arqutipos e esteretipos que lhe agrade, para ento criar um universo e trama em que a existncia deles faa sentido, adaptando o enredo de forma que d destaque s caractersticas/elementos que os compem.O que Otsuka e Shinjo esto falando que o foco principal de uma light novel mostrar o personagem, e no contar uma histria.A partir disso, Shinjo acrescenta:
?As ilustraes e outras formas visuais servem justamente para transmitirem mais rapidamente como o personagem. A light novel vem se especializando tendo isso como foco.?
E isso tem um resultado imediato: a autonomia dos personagens e o consumo deles, no lugar que, em leituras tradicionais, seria a trama e o roteiro. Fenmeno este chamado por Hiroki Azuma de ?consumo de banco de dados?, pois os personagens nada mais so que um conjunto de dados (cor dos olhos/cabelos/pele, biotipo, arqutipo de personalidade, gnero, famlia e etc.).
A partir desse prisma do ?consumo de banco de dados?, Azuma d a seguinte definio s light novels:
- Romances escritos de tal forma que, sendo o personagem o seu primeiro plano e a trama o segundo, so os ?dados? contidos nos personagens que definem a ambientao toda.
S para explicar um pouco melhor, light novels trabalham muito com simbologias, esteretipos e clichs, do ponto de vista visual. No coincidncia que as personagens de cabelos pretos, longos e lisos so geralmente ?rgidas, imponentes e inteligentes? ou as que usam culos e tm cabelos curtos so ?frgeis, carinhosas e instropectivas?; tudo um ?acordo cultural 2D? para transmitir rapidamente o que se esperar daquele personagem, s pelo seu character design.
No mnimo, essa uma caracterstica bastante gritante em light novel, que, se pudesse ganhar outra nomenclatura, certamente seria: character novel (ou, como diz Azuma, ?novelizao de personagens?).
E agora? Acho que podemos ir para a ltima definio.
- Livros que no tm compromisso em serem escritos com o uso correto da lngua japonesa e/ou apresentam uma grande liberdade e flexibilidade de formatao.
Bem, isso.Quando eu falo ?uso correto da lngua?, me refiro exclusivamente linguagem formal, e no erros de ortografia e gramtica. Afinal, light novels tambm passam por trabalhos de edio e reviso.Lembram que a nossa primeira definio que essas obras so a verso em prosa dos mangs shounens e shoujos? Isso se revela tambm nas escolhas de palavras, onde se admite muito coloquialismo, principalmente a lngua falada. Grias, regionalismos, abreviaturas, apelidos, memes? Tudo pode ser usado, inclusive pelo narrador.(No vou entrar em detalhes sobre as diferenas entre a linguagem formal e coloquial no idioma japons, at porque, tirando alguns detalhes, so basicamente as mesmas que no portugus.)Alis, esse aspecto se d muito por conta dos autores serem, geralmente, completos amadores no sentido real da palavra, tipo pessoas que nunca escreveram nada na vida, sequer estudaram ou se especializaram. Quando eu tiver oportunidade, quero destrinchar mais essa questo.
Quanto formatao, me refiro bold, italic, tachado, sublinhado e tudo que se tem direito, alm de aumentar ou diminuir o tamanho da fonte livremente, diagramar do jeito que for conveniente? Nunca vi cores, mas acho que s por uma questo de custos, porque se pudessem, com certeza teriam textos em vermelho.Em livros ?normais?, essa liberdade toda na formao simplesmente no existe (e nem aceito), tendo que ser tudo padronizado (al ABNT! Ou AJNT?). Imagina voc encontrar pginas como essas no meio do seu Dom Casmurro:
Deu pra sacar mais ou menos, n? A liberdade REAL.
Ento, resumindo, foram quatro definies:
- Livros em prosa cujo pblico-alvo a exata mesma demografia shounen e/ou shoujo dos mangs.
- A temtica recai majoritariamente nos personagens, e no na trama.
- Uma vez que os personagens assumem o primeiro plano e a trama o segundo, os ?dados? dos personagens que definem a ambientao.
- No h compromisso com o uso correto da lngua japonesa e/ou h uma grande liberdade e flexibilidade de formatao.
Alis, antes de terminarmos esta seo e irmos para a prxima, lembrei de uma coisa: muito comum a gente explicar, aqui no Brasil, que ?light novels so livros japoneses de leitura leve, com bastante ilustraes e dilogos?.Bom, embora essa ?definio? no esteja errada, at porque exatamente tudo que expliquei at aqui, eu sempre busco fazer a ressalva de que essa uma explicao super simplificada, pelas definies que citei acima e principalmente porque ela ignora as duas coisas que faz a light novel destoar de romances tradicionais: o foco absoluto em personagens e a linguagem coloquial.
Talvez, as pessoas que torceram o nariz depois de consumirem a ?histria? de uma light novel (e suas adaptaes), teriam tido uma impresso diferente se conhecessem esse background e as encarassem desde o comeo como algo que foge um pouco da curva. No tenho como saber.
IV. Sobre os ?anims genricos ruins?
Finalmente, vamos falar um pouco do estigma que existe no mercado de anims (no s brasileiro, mas no Japo e no mundo tambm) que, se voc est um pouco que seja por dentro, j deve ter ouvido: existem muitos anims genricos ruins por temporada e geralmente eles so baseados em light novels.
No segredo pra ningum que vivemos uma verdadeira poca de saturao de anims, tendo 30+ estreias por temporada, sendo literalmente metade delas baseadas em light novels. Existem alguns culpados pra esse fenmeno, ento vamos l.
Comeando pelo comeo, tenho que falar do sucesso estrondoso que tiveram obras mais antigas como Suzumiya Haruhi no Yuutsu (2006), Zero no Tsukaima (2006), Shakugan no Shana (2005), entre outros. Esses anims contriburam diretamente para que mais otakus fossem procurar e consumir light novels, dando um primeiro ?boom? no mercado. Com isso, mais obras de sucesso foram surgindo e sendo adaptadas, como Toradora! (2008), Toaru Majutsu no Index (2008), DURARARA!! (2010), e etc.
O SAO foi um sucesso to absoluto que, sozinho, foi o responsvel pelos 15 anims de light novel e 10 de isekai por temporada.
Foi graas ao SAO que os estdios tiveram a certeza de que o otaku japons adorava aquele tipo de histria: um garoto ?comum? que transportado para uma realidade alternativa onde pode se tornar o maior heri de todos.
Escolinhas no estavam mais com nada, legal mesmo era fazer a jornada do heri (shounen), usar poderes especiais (shounen) e ser o mais foda de todos (shounen). Lembram que a primeira definio de light novel que ela um mang shounen em prosa? Pois .Pra melhorar ainda mais, o conceito de ?mundo alternativo? facilitava o emprego do outro elemento crucial para uma light novel: a valorizao dos personagens acima da trama. Ou seja, em um mundo paralelo, nunca vai ter um personagem que ?no faz sentido estar naquele universo?, porque vale tudo. O autor livre pra criar o personagem que ele quiser e colocar dois deles que no tm nada a ver do ponto de vista esttico no mesmo balaio.
(Alis, essa questo toda envolvendo a priorizao dos personagens exatamente a indignao do Leo Kitsune no vdeo dele sobre Goblin Slayer, l pelos minutos 32:00.)
Foi a partir da que as coisas comearam a desandar. Os estdios descobriram o seu novo caa-nquel, e com o mercado de light novels aquecido desde 2010, o que no faltava era gente amadora fazendo suas histrias e publicando a torto e a direito, seja por editoras ou pela internet.
O problema foi que, no meio desses 15 isekais que tentavam ser como SAO, todo ano surgia algum que fazia bastante sucesso. No como o SAO, mas um sucesso notvel: Log Horizon (2013), No Game No Life (2014), Overlord (2015) e Re:Zero (2016).
Ento, a cada ano que passava, os estdios iam perdendo cada vez mais a mo, esperando que aquele isekai que escolheu seria o prximo medalho. Por conta disso, bvio que muita coisa vai parecer ?genrico?, porque todos so literalmente SAO frustrados.
Uma coisa que eu gostaria de pincelar, que j falei l em cima, que muitas das light novels recentes so praticamente fanfics, criadas e escritas por pessoas que nunca pararam pra estudar estruturas narrativas ou se aprofundar o mnimo que seja no aspecto tcnico da escrita.
Na esmagadora maioria das vezes so otakus que, com o crescimento explosivo do mercado, viram uma oportunidade de tambm dar vida ao seu mundinho que sempre sonhou viver, depois de ser influenciado diretamente pela onda recente de isekai (fantasia no geral) e indiretamente pelos shounens que leu quando criana.
Eu aposto com voc: no existe otaku que nunca tenha lido shounen quando criana ou adolescente. A questo que, assim como qualquer ser humano, os otakus tambm envelhecem. A imerso no mundo dos shounens no mais to divertida quanto era antes (leia o meu outro texto que explica sobre essa imerso e os shounens). Por isso, eles fazem adaptaes que represente melhor a sua imerso (ou at escapismo), na forma de um mundo alternativo onde possa ser o mais forte de todos sem se esforar tanto, cercado por mulheres bonitas.
Em uma prxima oportunidade, quero falar especificamente desse pessoal ?recente? que t escrevendo light novels, principalmente no site de compartilhamento de histrias chamado Syosetsu-ka ni Narou (?Vamos ser escritores?, em traduo literal), e as minhas consideraes sobre o perfil do otaku moderno.
Talvez eu faa outra thread no Twitter, que voc pode conferir aqui: twitter.com/nojiri_s
Mas por hoje acho que isso. Espero ter dado uma perspectiva nova com relao s light novels, e qualquer coisa, podem me procurar pelo Twitter ou pelo e-mail: [emailprotected]